sexta-feira, 10 de julho de 2009

OS CONFLITOS DA NOVA FAMÍLIA


16/05/2008 - 20:49 Edição nº 522



Os conflitos da nova família
O caso Isabella expôs os conflitos nem sempre declarados entre madrastas, enteados e meio-irmãos. Como lidar com o ciúme, as brigas pelo poder e a rejeiçã
Martha Mendonça
Pai de cinco filhos, de 3 a 20 anos, de quatro casamentos, o empresário carioca Antônio Cardoso, de 52 anos, diz que o conflito entre as crianças e a mulher da vez pesou em seus dois últimos divórcios. “Sou um pai que gosta de estar presente. Ao me divorciar, nunca virei um ‘ex-pai’. Mas minha mulher sempre queria deixar os enteados de lado, e isso se agravava quando nascia o filho dela”, afirma. No atual casamento, em que teve duas filhas, hoje com 5 e 3 anos, Cardoso reconhece que não é diferente. Para passar mais tempo com os filhos dos relacionamentos anteriores, a solução foi chamá-los para trabalhar com ele. “Estou no centro de um cabo-de-guerra de ciúme e inseguranças, seja entre madrasta e enteados, seja entre os próprios meios-irmãos”, diz.
O conflito é maior enquanto a nova mulher ainda não tem filhos. “É a frustração do desejo de ser a primeira a dar filhos àquele homem”, diz o psicólogo Sócrates Nolasco
Não faltam obstáculos para a harmonia nos novos núcleos. “O primeiro deles é o desrespeito com o passado do outro”, diz Eliana Riberti, psicóloga e mediadora em Varas de Família de São Paulo. Nessas Varas, são comuns casos de homens e mulheres que não aceitam a proximidade entre seus companheiros atuais e os “ex” – e vice-versa. “A má influência dos ex também chega, indiretamente, através das crianças”, diz a psicóloga. É a “crise de fidelidade” dos filhos em relação ao pai ou à mãe responsável pela desavença: eles se tornam agressivos com o padrasto ou a madrasta, fazendo transbordar o ciúme.
O antigo arranjo do “fim de semana sim, outro não” deu lugar a vários tipos de acordo que dão ao homem separado mais tempo com os filhos de casamentos anteriores. Era inevitável que isso alterasse a relação desse homem com a nova companheira. “Quando a madrasta não aceita o enteado, na verdade não está aceitando o passado do marido. Um filho é um vínculo de carne e osso com a ex-mulher”, diz Anne Lise Scapatticci, psicanalista infantil e doutora em saúde mental pela Escola Paulista de Medicina. “E o pior: é um vínculo que vem antes dela.”
O leva e traz de uma casa para outra é muito comum. Os especialistas afirmam que usar as crianças como “pombos-correios” é um desrespeito às crianças. Casada com o analista de sistemas Alexandre Silva, de 39 anos, a veterinária carioca Bianca Couto é mãe de Paola, de 12, e madrasta de Camila, de 11. Bianca confessa que sempre questionou os mimos do marido com Camila. Ela queria continuar dormindo com o pai, como fazia antes do segundo casamento. A relação pouco amigável de Alexandre com a ex-mulher resultou num convívio frio entre Bianca e Camila. A situação piorou quando Bianca descobriu que a enteada contava para a mãe as brigas na casa do pai. “Perdi a paciência, briguei com o Alexandre e com a Camila. Depois conversamos. Mas a verdade é que, quando ela está, não me sinto à vontade, não sou eu mesma”, afirma Bianca. Camila diz apenas que acha “muito chata” a situação. Hoje, as duas fazem terapia para desatar os nós.

A disputa entre meios-irmãos por atenção pode até pôr fim a casamentos. Os desentendimentos entre a nova mulher, Renata, e os filhos acabaram com o relacionamento do paulista Ronaldo Toseti, hoje com 47 anos. Inicialmente, Ronaldo vivia com os filhos, de 17 e 14 anos, e namorava Renata. Quando todos passaram a viver sob o mesmo teto, Renata se incomodou. “Passei a exigir uma mudança de hábitos, uma divisão de tarefas, uma disciplina maior”, diz Renata. Ronaldo afirma que a filha não respeitava a privacidade da madrasta. “Eram brigas verbais sérias. Minha filha mexia nas coisas da Renata.” Essa situação durou quase um ano, até que o casal resolveu procurar uma terapeuta familiar. Até os filhos foram às sessões. Não adiantou. A filha voltou a morar com a mãe e o casamento acabou. “Fiquei muito mal. Emagreci, sofri, chorei. Fiquei sem mulher e sem filha”, afirma Ronaldo.

“As pessoas se separam para fugir de determinadas tensões e, ao se casar de novo, substituem-nas por outras”, diz o psicólogo carioca Sócrates Nolasco. Estudioso do universo masculino e autor de livros como O Mito da Masculinidade e De Tarzan a Homer Simpson (editora Rocco), ele diz que em seu consultório muitos homens em segundos e terceiros casamentos reclamam da rotina de ciúme e desentendimentos envolvendo filhos, ex-mulher e atual mulher. Os conflitos são maiores quando a nova mulher não tem filhos. “É a frustração do desejo de ser a primeira a dar filhos àquele homem”, diz Nolasco. Sob pressão de dois – ou mais – lados, os homens muitas vezes se calam, o que faz o problema crescer. “Eles receiam que o casamento fracasse novamente. Acabam cedendo à mulher para encerrar o assunto.”

Na família da dona de casa curitibana Ana Cláudia Vivacqua, de 37 anos, e do professor Elton Maravalhas, de 44, isso envolve muita gente. Maravalhas tem três filhos do primeiro casamento – Fernanda, de 15 anos, Rafaella, de 13, e Felipe, de 11. Ela tem um menino, Gabriel, de 13 anos, de sua primeira união. Juntos, têm ainda a pequena Rebecca, de 2 anos. “Confesso que achei que seria mais simples”, diz Elton. Todos têm ciúme da caçula, em especial Felipe, que por algum tempo foi o mais novo da casa. “Ele cria confusões para ter a minha atenção exclusiva”, diz o pai. De dois anos para cá, a convivência entre todos, que só ocorria nos fins de semana, passou a ser em tempo integral, desde que a mãe dos meninos perdeu a guarda das crianças, por problemas pessoais.

O casal tenta criar regras para o convívio de todos. Com sete pessoas e uma casa grande – comprada recentemente para acomodar todos –, é necessário que cada um contribua com alguma tarefa. Eles esbarram em um problema básico dos novos lares: como impor autoridade, quando não se é o pai (ou mãe)? Ana Cláudia, a madrasta, assumiu o papel de mãe. Mas não é mãe. Freqüentemente, quando Maravalhas chega do trabalho, recebe o que chama de “relatório do dia”. É comum que Ana Cláudia se queixe da desobediência dos enteados. Maravalhas confessa que muitas vezes não sabe que decisão tomar. “Esse arranjo de família ainda não tem manual”, diz.

Os conservadores culpam o modelo moderno de família pela existência de conflitos. Para o padre Jesus Orthal, teólogo e reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a questão não começa na família reconstituída – e sim na família desfeita. “A separação contradiz o que foi prometido ao outro. Quando surgiu a lei do divórcio, falou-se em exceção. Hoje, virou regra. Separar-se é quase como mudar de roupa”, afirma.


ACORDOS
O diretor José Alvarenga e a atriz Helena Fernandes tiveram juntos Antônio, de 5 anos (de amarelo), e Lucas, de 4 (de verde). O filho de Helena, Yan, de 19 anos (de branco), e o de Alvarenga, Pedro, de 12 (de preto), tiveram de se adaptar. “Vivemos em eterna negociação”, diz a atriz

O diálogo é a receita básica de psicólogos para reorganizar a família. Casados há oito anos, o diretor de cinema e TV José Alvarenga, de 47 anos, e a atriz Helena Fernandes, de 39, têm quatro filhos: Yan, hoje com 19 anos, é do primeiro casamento dela; Pedro, de 12, é da união anterior dele. Juntos, têm Antônio, de 5, e Lucas, de 4. O casal diz que hoje consegue viver em harmonia, mas que o nascimento dos pequenos desestabilizou os mais velhos, que perderam o papel de “filhos únicos”. Yan teve de fazer terapia. “Eu sabia que meu espaço ia ser atropelado”, diz ele. Pedro se queixa até hoje. “Prefiro ficar na casa da minha mãe. Meus irmãos menores me chateiam o tempo todo”, afirma. Segundo Helena, nunca houve uma grande crise, mas a vida de família “é uma eterna negociação”.

Famílias irregulares sempre existiram no Brasil. Os europeus trouxeram para o Novo Mundo a família tradicional, sacramentada pela Igreja, com filhos legítimos educados de forma cristã. Mas a prática era bem diferente. “O que houve por aqui foram núcleos compostos também de concubinas, filhos ilegítimos, agregados, adotivos e mulheres sozinhas que enviuvavam e casavam-se novamente”, diz a historiadora Mary del Priore, autora do livro A Família no Brasil Colonial (editora Moderna). As mulheres entraram no mercado de trabalho, ganharam independência financeira e sexual e a família acompanhou essas transformações. “Hoje, nos debatemos entre o desejo de multiplicidade de parceiros sexuais e a estabilidade necessária aos filhos.”Apesar das mudanças, a família continua a ser o núcleo básico da sociedade, o espaço por excelência da transmissão de valores de uma geração para outra. “É em casa que aprendemos o que é certo e o que é errado. É ali que está a nossa sustentação”, afirma Mary del Priore.

A terapeuta de família paulistana Lídia Aratangy diz que, embora haja conflitos de naturezas diferentes, as saídas para a resolução dos problemas na nova família passam pelas mesmas da família tradicional: tolerância para lidar com as diferenças, bom humor para enfrentar as dificuldades e controle das próprias fantasias e inseguranças. Lídia alerta sobre o risco das generalizações. A tragédia de Isabella pôs os holofotes sobre um problema real das novas famílias, mas isso não deve resultar numa “demonização” das madrastas ou das uniões de casais separados. “Muitas crianças espancadas e seviciadas vêm de famílias ditas ‘estruturadas’. E muitas crianças felizes e bem cuidadas vivem entre a casa do pai e a casa da mãe”, afirma. Lembrar-se disso é o primeiro passo para uma convivência harmoniosa